segunda-feira, outubro 18, 2004

A propósito de guardiães…

Sempre gostei de guardar coisas. Em criança tinha sempre uma caixa que enfeitava com recortes e desenhos que variavam conforme os gostos das modas a que pomposamente dava o nome de Caixa de Recordações. Era uma caixa mágica cheia de tesouros. Cartas, bilhetes de cinema e de autocarro, pedras e conchas, ganchos de cabelo, sapatinhos de bonecas e outras maravilhas que tais. Todas essas “coisas”, percebi mais tarde, eram apenas metáforas dos afectos que fui guardando ao longo da vida. E por falta de espaço, e porque as caixas se iam amontoando, fui começando a deitar fora as coisas e a guardar apenas os afectos. Guardo também palavras e frases. Assim me fui tornando uma guardiã de memórias.
E guardo com ternura a pessoa que me disse um dia que somos os guardiães das memórias dos nossos filhos. E tenho pena e orgulho que o meu pai tenha levado com ele momentos da minha infância. E lembrei-me de novo de como as palavras são importantes quando as saboreamos como um doce.
Tenho uma assistente que me visita regularmente em casa para me vender livros. Não gosto de comprar livros por catálogo. Gosto do aroma doce das livrarias e de abrir os livros devagarinho, saboreá-los e escolher um que me encante o dia. Mas tenho uma assistente que me visita regularmente. Apanha-me sempre a horas de jantar, hora de novidades e notícias do dia, hora de gente, hora de tudo menos de livros. Mas traz com ela uns olhos cansados e uma criança pela mão. Suponho que este seja o seu segundo emprego, “para as faltas” e suponho que a não tenha com quem deixar a criança. Nunca sei o que lhe comprar. Peço-lhe uma sugestão, peco-lhe baixinho que se despache e que vá para casa. Mas sei que preciso de lhe comprar um livro. Um qualquer, tanto faz. Só gostava de ter tempo para falar com ela. Mas compro-lhe um livro. Regularmente. O Último que me vendeu é de uma escritora da moda. Portuguesa. Jornalista. Publica muito. Vou ler. Leio. O livrinho fininho tem uma dedicatória. “Aos meus queridos I e BA, guardiões dos grandes valores intemporais”
Nem de propósito. Afinal eu tinha razão. Era mesmo guardiões! Mas sou uma guardiã. E já tinha vários amigos que delicadamente ou menos delicadamente me tinham chamado a atenção para o erro. Abro outro livro. Este, leio-o sempre que preciso de outros guardiães de palavras.
*página 182, 2ª Edição, Edições Sá da Costa, CUNHA Celso e CINTRA Lindley, Nova Gramática do Português Contemporâneo.
Singular – guardião; Plural – guardiães.


Vou continuar a comprar livros por catálogo à minha assistente. Um dia destes vou ter tempo para falar com ela. Quem sabe se consigo pintar um brilho nos seus olhos cansados.