quinta-feira, janeiro 13, 2005

Crónica do dia com estórias

Dia de viagens na grande cidade. Opção inicial. Transporte ideal. Opto. Metro e Autocarro. Barato e sem complicações. Escuso de me preocupar com o estacionamento. Vamos a isto que se faz tarde.
Estação terminal de Metropolitano. Tanta gente que não conheço, que aparenta pressa, cafetarias a abarrotar, café é urgente tomar.

Vamos lá à bica tirada por um senhor de lhos claros e cabelo curtinho, a lembrar terras frias, coadjuvado por uma menina de olhos escuros a lembrar terras quentes. Sotaques variados, mesmo o salário mínimo cá ainda dá para irem vivendo com meia dúzia de colegas num quarto alugado.

Oiço música. Identifico o instrumento. Acordeão. A melodia é suave e impõe-se no ruído da turba que começa a jorna. Procuro a origem do som que me agrada muito. Vejo-os. Dois homens de meia idade. Trazem nas rugas do rosto estórias que adivinho, um deles acaricia as teclas do acordeão e dele faz maravilhas, o outro tem uma pandeireta na não com algumas (poucas) moedas. Aproximam-se do meu espaço, invadem-no e eu espero que a música venha até mim... já adivinho o café perfumado de acordes...

Desperto do sonho, com uma voz metálica – “Olhem lá, não podem estar aqui!!!” Fere-me outra voz agreste – “Vão trabalhar!!! Há p’rai muito trabalho!!!” Estala-me no rosto ainda outra voz – “Isto não é sítio de andar a pedir!!!.”

Pedir??? Então este homem e o seu acordeão oferecem-me este prazer da sua música, apagando o som terrível do cavalo de aço que me engole... Procuro a carteira. Deito umas moedas envergonhadas na pandeireta e cruzo um olhar cúmplice. Ofereço um sorriso. Porque sou cobarde. Devia ter dançado com eles e saber das festas que faziam no seu país que morre de tristeza...

Avanço no meu dia, deixo-me engolir.

Espero pelo autocarro, que tem hora marcada. Aproveito para fazer 30 telefonemas. Novo número, agora para o Porto (aqui tão perto e eu quase morta no deserto... ) Responde-me uma voz de desprezo.. "o teu saldo Yorn não te permite fazer a ligação." Mas quem é esta gaja? Conhece-me de algum lado para me tratar por tu?? Percebo então que diz o mesmo a todos, a oferecida.. Percebo que tenho de procurar uma máquina que me resolva o problema. De máquinas percebo.. um pouco. Cartão. Código. Pressa. Oiço uma nova voz.
"Tenho fome, compras-me uma sandes?" Só me faltava isto. Olho para o lado. Tenho de baixar o olhar. A emissora da voz é pequenina. Aliás são duas. "Agora não posso. Tenho de carregar o telemóvel." Mas que raio de resposta é esta? Fui eu que falei? Olho para elas e para o ecran que me pede um número.

Um olho no burro outro no cigano… agora é que o ditado bate na mouche.

Lindas.. uns dez anos bem vividos. Cor de pele morena, contrastando com o dourado do cabelo. "O que foi??" "Uma sandes?" "Quanto custa uma sandes?" "4 euros". Onde está o número do telemóvel? Carteira. O número.. Não tenho moedas. O número.. "Não tens nada?" ... Tenho tudo, quero cá saber do número, procuro no fundo da mala.. depósito de trocos preguiçosos do porta moedas. Agarro nas que me saltam nos dedos. "Chega para a sandes?" Não sabem , mas querem dividir, não sabem fazer as contas, mas sabem o que é partilhar. Pronto.. estou rendida.. "E a escola, hoje não houve?" (como se eu não soubesse a resposta) "Não vamos à escola" Porquê? .. (cá foi a pergunta parva.) "Mudámos de casa e não temos registo."

Registo. O seu registo fica no meu coração. Fico no delas por segundos. Falamos como mulheres que somos. A escola. - "Vejam lá se há alguém que vos possa por na escola outra vez"... Elas gostavam da escola (como se eu não soubesse a inteligência e vontade de aprender destas crianças...)

Procuro as últimas moedas. Damos beijinhos. Tinham fome, sim.. de ser gente e de poder crescer no mesmo mundo em que eu vivo... Serão mulheres lindas, poderiam ser chefes do mundo...

Telemóvel mudo. Viagem até ao fim... Termino as tarefas.

Fim de dia. Café da moda. O sotaque quente dos meninos e meninas que servem as bicas e as águas tónicas, adivinha gente que saiu do seu lindo país à procura do Eldorado. Oxalá o encontrem... Sento-me sedutora. Amigo de longa data partilha a crónica do meu dia. Tá-se bem.. Estamos em casa.

Ouço a última voz... Minha senhora, pode dar-me um cigarro? Foco a objectiva do meu olhar. Homem ainda jovem, olhos claros, "vens do Leste? vens de onde não te querem?" dou-te o cigarro, dou-te o maço, dou-te a minha alma. Já cheguei ao fim....

No próximo dia em que tiver vontade de me encher da cidade, irei de carro. Prometo que vos trago um arrumador.