segunda-feira, novembro 15, 2004

Dias de Luz

Era o tempo mágico da infância. Tempo que se prolongava por quatro intermináveis meses, em que todos os dias eram iguais, sempre povoados por risos quentes e cheiros doces a fruta de verão e marisco acabado de vir do mar...Curiosamente, nunca chovia, nem havia nuvens no céu. A praia, branca e azul era só nossa... O mar estava sempre ali, todas as manhãs... esperando pelos nossos corpos infantis, que se confundiam com as medusas e sereias, num jogo, só compreendido por quem ainda tinha os olhos abertos de espanto.

Os anjos da guarda das crianças (felizmente, cada uma de nós tinha o seu) acompanhavam alegremente as nossas terríveis aventuras, de fugas em pequenos botes de madeira ou em colchões de borracha, transfigurados em caravelas, desafiando os monstros marinhos...explorando grutas de piratas, onde os tesouros esperavam por nós.
Nas arcas mágicas (baldes de plástico transportados com todo o segredo) guardávamos então os tesouros, que escondíamos bem fundo na areia tão quente, por trás das muralhas do castelo (ou atrás das barracas do Sr Serafim...).

Éramos os reis do mundo, piratas bons, que apenas roubavam ao mar o que ele generosamente nos dava.

Findo o jogo, era tempo de procurar refúgio, não fosse o Cabo do Mar (na sua farda brilhante e intimidadora) descobrir as nossas pilhagens.
Confesso, que este medo me fazia abandonar os meus companheiros e correr pela praia fora, corpo franzino e ágil, coberto com uma pequena tanga, (ainda não chegara o tempo de cobrir pudicamente o corpo de mulher que se avizinharia), cabelo comprido e molhado que se colava à cara, mergulhar no mar que me acolhia e depois rebolar na areia branca e quente até ficar disfarçada, irreconhecível, como os índios mascarados de areia...
Agora sim.... estava quase a salvo. Faltava apenas chegar àquele toldo branco onde ele estava deitado numa cadeira de lona, lindo na sua camisa branca e calças cinzentas, boné de lobo do mar... e enorme como um gigante protector dos pequenos piratas.
Eu chegava ofegante... sentava-me à sua sombra, que me cobria toda e sentia o seu cheiro... quente e doce... cheio a pai... misturado para sempre com o cheiro a coco dos bolos do Sr. Embaixador e da maresia que se entranhava nos nossos cabelos. As mãos grandes de pai limpavam-me então as costas suavemente, sacudindo a areia que se colara à pele como um vestido. E eu oferecia-lhe um tesouro que roubara ao grupo. Um búzio... por onde ambos ouvíamos o mar lá ao longe... onde não havia mais ninguém, a não ser nós dois.
Não eram precisas mais palavras... os outros, os mais velhos, quando chegavam, das suas aventuras de gente grande, traziam os gritos da adolescência, roubavam-me o meu príncipe encantado... que nos amava a todos, com a sabedoria de quem sabe amar...

O meu momento terminara... mas ficaria para sempre a cor da sua camisa branca e o seu cheiro doce de ternura.