terça-feira, novembro 09, 2004

Pai

Há memórias que ficam por aí nas caixas de recordações que deixamos nas gavetas cor de mogno da recordação. De vez em quando as memórias saltam das gavetas, e ganham novas vidas.

Tenho um AMIGO que me dá prendas. Tantas prendas... Vá-se lá saber porquê. Ontem deu-me esta:


foto do Efe Castelo

Esta fotografia é tão doce como a memória que tenho do meu pai. Estes eram os doces que ele me trazia, ao fim de dias de saudade, envolto em luz e calor. Mas dos doces chamados Dons Rodrigos falarei outro dia. E da doçura de uns olhos cor de azul...
Hoje fui buscar uma estória de amor de despedida e de reencontro.



Pai

Em memória a ambos


Ele era caçador. Tinha vários cães, esbeltos e de pelo sedoso. Usava à cintura as perdizes que se deixavam apanhar.
Sei isto, porque roubei o momento a preto e branco disfarçadamente e guardei-o junto a outros momentos desfalecidos pelo tempo.
Um dia Ele passou a gostar de pássaros e dedicou-se ao tiro aos pratos. Isto sei pelas taças brilhantes que tirava das prateleiras quando ninguém via, e voltava a colocá-las cuidadosamente no sítio do espanador do pó; e pelos canários que esvoaçavam de vez em quando pelas salas fora, provocando ondas de amarelo deliciosas e gritos de zanga Dela. Ele também gostava de cágados que comprava aos montes e que desapareciam inexplicavelmente ao fim de poucos dias. (Mas não é dos cágados que se fala agora, essa estória será para um dia mais cinzento)

Ela detestava os cães, os pássaros, os cágados e muitas outras coisas Dele. Andei muitos anos para perceber de que coisas gostava Ela.

O último cão já não caçava. Era rafeiro e o maior gozo Dele era soltá-lo na praia dos meus desejos ao por do sol e deixá-lo correr que nem um louco. Era um cão pequenino, mas muito corajoso. Atirava-se aos cães grandes e eu morria de medo que o matassem.

Um dia o cão rafeiro ficou velhinho. Era a hora dele, toda agente sabia. Era de noite e o cão precisava de dizer adeus. Deitou-se no colo Dela, olhou-A uma última vez. Ela nunca amara aquele cão nem as corridas pela praia que lhe roubavam mais tempo e tempo de um tempo que nem ela sabia que se esgotaria um dia. Mas era ela que lhe dava de comer.
O cão rafeiro com nome de personagem de conto de fadas, deitou-se no colo dela, olhou-a uma última vez e morreu de mansinho.

Isto também sei, porque eu estava sentada de pernas cruzadas no chão da cozinha e vi as lágrimas no rosto Dela. Lágrimas novas para mim. Gotas que eu desconhecia serem vindas de uma alma que eu não sabia a quem pertenciam.

Ele... o Príncipe das minhas estórias...Ele não conseguira ver o cão partir, não estava lá nessa hora em casa, não teve coragem de o segurar no colo, esqueceu-se da hora, sei lá?
As razões ficam para outro dia. As razões nunca serão minhas nem nossas.

O nosso rafeiro morreu, enfim, à espera do seu dono. Só Ela e eu estávamos lá. Nunca percebi porquê.

Só ao fim de séculos percebi afinal porque éramos apenas mulheres na cozinha.
E soube dolorosamente quem ela o amara sempre.

texto editado num dia de pai em mulheres em chamas