Pai
Há memórias que ficam por aí nas caixas de recordações que deixamos nas gavetas cor de mogno da recordação. De vez em quando as memórias saltam das gavetas, e ganham novas vidas.
Tenho um AMIGO que me dá prendas. Tantas prendas... Vá-se lá saber porquê. Ontem deu-me esta:
foto do Efe Castelo
Esta fotografia é tão doce como a memória que tenho do meu pai. Estes eram os doces que ele me trazia, ao fim de dias de saudade, envolto em luz e calor. Mas dos doces chamados Dons Rodrigos falarei outro dia. E da doçura de uns olhos cor de azul...
Hoje fui buscar uma estória de amor de despedida e de reencontro.
Pai
Em memória a ambos
Ele era caçador. Tinha vários cães, esbeltos e de pelo sedoso. Usava à cintura as perdizes que se deixavam apanhar.
Sei isto, porque roubei o momento a preto e branco disfarçadamente e guardei-o junto a outros momentos desfalecidos pelo tempo.
Um dia Ele passou a gostar de pássaros e dedicou-se ao tiro aos pratos. Isto sei pelas taças brilhantes que tirava das prateleiras quando ninguém via, e voltava a colocá-las cuidadosamente no sítio do espanador do pó; e pelos canários que esvoaçavam de vez em quando pelas salas fora, provocando ondas de amarelo deliciosas e gritos de zanga Dela. Ele também gostava de cágados que comprava aos montes e que desapareciam inexplicavelmente ao fim de poucos dias. (Mas não é dos cágados que se fala agora, essa estória será para um dia mais cinzento)
Ela detestava os cães, os pássaros, os cágados e muitas outras coisas Dele. Andei muitos anos para perceber de que coisas gostava Ela.
O último cão já não caçava. Era rafeiro e o maior gozo Dele era soltá-lo na praia dos meus desejos ao por do sol e deixá-lo correr que nem um louco. Era um cão pequenino, mas muito corajoso. Atirava-se aos cães grandes e eu morria de medo que o matassem.
Um dia o cão rafeiro ficou velhinho. Era a hora dele, toda agente sabia. Era de noite e o cão precisava de dizer adeus. Deitou-se no colo Dela, olhou-A uma última vez. Ela nunca amara aquele cão nem as corridas pela praia que lhe roubavam mais tempo e tempo de um tempo que nem ela sabia que se esgotaria um dia. Mas era ela que lhe dava de comer.
O cão rafeiro com nome de personagem de conto de fadas, deitou-se no colo dela, olhou-a uma última vez e morreu de mansinho.
Isto também sei, porque eu estava sentada de pernas cruzadas no chão da cozinha e vi as lágrimas no rosto Dela. Lágrimas novas para mim. Gotas que eu desconhecia serem vindas de uma alma que eu não sabia a quem pertenciam.
Ele... o Príncipe das minhas estórias...Ele não conseguira ver o cão partir, não estava lá nessa hora em casa, não teve coragem de o segurar no colo, esqueceu-se da hora, sei lá?
As razões ficam para outro dia. As razões nunca serão minhas nem nossas.
O nosso rafeiro morreu, enfim, à espera do seu dono. Só Ela e eu estávamos lá. Nunca percebi porquê.
Só ao fim de séculos percebi afinal porque éramos apenas mulheres na cozinha.
E soube dolorosamente quem ela o amara sempre.
texto editado num dia de pai em mulheres em chamas
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