quarta-feira, outubro 27, 2004

Inverno anunciado

Entraram na leitaria discretamente, nesta manhã de inverno revisitado. O Sô Zé olhou o casal pelo canto do olho e dirigiu-se à mesa no centro do sala, que os dois ocuparam.
Observou os novos clientes. Nunca por aqui tinham passado. Não lhes daria atenção.

O homem vestia fato completo, ou era vestido por ele, de tão próximo se encontravam, roupa e homem, ao pescoço, a grilheta de seda, que lhe puseram, quando lhe disseram, agora és um Senhor, andando suavemente nuns sapatos pretos tão adequados par um dia de chuva e que nunca viram um salão de baile. A mulher usava uma gabardina cinzenta, comprida, que lhe tapava as pernas e a alma, escondendo o vestido primaveril de cores alegres que vestira às escondidas da chuva.

Pediram delicadamente o que desejavam tomar. Meia torrada com pouca manteiga e café sem açúcar. Com clientes destes, pensa o Sô Zé, fechava já a loja. Serve o pedido distraidamente, até com algum desprezo. Ouve-os falar baixinho, mas surpresa da manhã... pensam muito alto, quase gritam as palavras que sufocam na máscara de todos os dias. Das-lhes-á, um pouco de atenção, afinal o café ainda está vazio e não apetece olhar para a paisagem.

- Levas-me ao aeroporto agora, pergunta ele, pensando onde ficaste no meio do caminho, onde guardaste o teu sorriso luminoso, onde está a companheira que me dava a mão quando eu tinha medo de andar de avião, onde está o teu vestido colorido, porque te vestes de silêncio, porque não vens comigo.

- Levo sim, ainda tens tempo, o avião só parte dentro de duas horas, responde ela, pensando, onde te perdeste de mim, em que apeadeiro saíste e me deixaste sozinha no comboio, onde perdeste a tua gargalhada límpida quando eu te fazia rir, onde guardaste as aguarelas com que me pintavas os dias, porque usas essa gravata, porque não me pedes que vá contigo.

Terminam o café. Terminam a breve conversa. Levantam-se e num gesto subtil e suave a gabardina cinzenta afasta-se, deixando ver os tons de aguarela do vestido cor de flores que se destacam no cinza do dia. Dizem obrigada ao Sô Zê. É gente educada que agradece a quem lhes acolhe os pensamentos.

Antes de passar a porta, ela olha de relance para um canto da sala e vê uma boneca de porcelana que observa com olhos de vidro os pingos de lágrimas que caem na vidraça. Lembra-lhe num momento breve uma boneca igualzinha que tivera na sua infância.

Estes clientes não voltarão à leitaria.

Ela talvez volte. Ficou-lhe a saudade de provar os boiões de doce caseiro e voltar a olhar a boneca de porcelana, igual à sua.

O Sô Zé põe a tocar na vitrola Eagles Hotel Califórnia.

segunda-feira, outubro 25, 2004

Voar

Quando eu era criança tinha um sonho em que voava por cima da minha rua. Via a minha casa, os carros, as pessoas e eu só voava por cima da minha rua. Lembro-me do sorriso com que me via à janela, quando acordava...Ainda não desisti de aprender a voar.

eu conheço esses pássaros
que planam no azul
sem aviões que fazem barulho
vêm pela manhã
como as gaivotas sem rumo
apenas pelo prazer de voar nos céus azuis

e são asas de sonho
coragens feitas de medos
ultrapassam as horas dos dias
esquecem os sentidos obrigatórios

voam para o nada que se faz tudo
voam para chegar mais cedo sem horas marcadas
voam para sorrir ao outro lado do prazer.

sábado, outubro 23, 2004

Palavras ao Vento

Estava mesmo escuro. Estava mesmo silêncio. Estava mesmo tudo inerte.

Conseguia sentir o frio no meu suspirar, e aparentemente os sons que invulgarmente tentava emitir, caiam no chão ao saír, desfazendo-se como se fossem estalactites.
Era perceptível que nada estava bem.
O realismo era tanto, que pensei até que me tinham feito um paste inside, num filme qualquer do Hitchcock.
Tentei gritar...mas nada do que dizia aparentava ter sentido.
- São só palavras - Pensei, entre dois pontos de exclamação.
- Apenas palavras!!
De seguida surgiu uma luz.
Era uma luz forte, muito brilhante e ligeiramente esverdeada. De início pensei tratar-se de um Verylight, mas rapidamente me lembrei, que nunca havia entrado num estádio de futebol.
Acalmou-me por uns segundos, depois tornou-se extraordinariamente irritante, e insistiu em recordar-me novamente das palavras...de todas elas.
Lembrei-me do que disse, do que ouvi, lembrei até do que nunca tinha sido dito por ninguém.
- Sou só palavras...mas serão elas minhas?
Ocorreu-me se as palavras serão de quem as escreve ou se de quem as lê.
Não cheguei a conclusão nenhuma, e tentei desesperadamente afastar-me da luz.

Nisto, noto que não estou só. Uma presença subtil assume o seu contorno, e surge na minha frente na forma de tablóide. Preto e branco. Frágil e efémero.
Se por um lado me senti tranquilo, por outro fiquei apreensivo, a barriga tremia e não conseguia identificar com certeza de onde surgia o meu pavor.
Pensei em ti para me consolar, para me confortar...não resultou totalmente, mas sosseguei um bocadito.
Depois secretamente, procurei o teu refúgio, como sempre para ver se me encontrava junto de ti.

Vejo teus olhos...Sinto o teu corpo...Respiro o teu cheiro e no fim sinto ainda mais a tua ausência.
Denuncio-me conscientemente, e apelo ao meu instinto que me leve até ti.
Ele por vezes não me responde. Ele por vezes também não sabe o que fazer.
Imagino as coordenadas certas...a meta é viajar para sul. Lá encontrarei o que me faz falta.
Sem explicações assombrosas, vou saber finalmente que a saudade irrita-me apenas porque queria estar mais perto de ti, e daqueles ideais que despertas em mim.
Permito-me sonhar mais um pouco, e emergir na loucura constante que é nada saber de concreto...sei que existes, também sei que por certo também existo...mas... Esqueço-me de meus segredos, e invejo os teus. Apenas e só, por serem teus.

Sou só palavras, concluí...depois, esqueci-me de ser esquecido!

sexta-feira, outubro 22, 2004

Ainda a sedução das palavras (II)

Porque escrevemos em blogs? Já não precisamos de guardar as cartas em papel, nem os pequenos poemas em pedaços de toalhas de mesa de café. Já não usamos cadernos de linhas, nem blocos de notas.
E lemos o que os outros escrevem para si próprios. Ou para nós. Somos por um instante o destinatário da mais bela carta, do mais admirável poema de amor. E podemos participar na escrita do outro. Deixar um comentário. Passamos a fazer parte dos mundos dos outros.
A comunicação que se estabelece nestes momentos fugazes on line não deixam de me espantar (ainda me espanto de existir... posso entrar na Floresta Encantada do João Sem Medo).
Entremos então na floresta mágica de enganos... Procuram-se empatias, simpatias, ou apenas uma “voz” do outro lado do écran.
Soltam-se signos, palavras, timidamente palavras, que vão descodificando emoções, que vão desfiando confissões, que vão despindo sensações, que vão descarnando sentimentos.
Escrevem-se frases, ao sabor do momento, ao sabor do cheiro de um cigarro cujo fumo amarelece o teclado, ao sabor de uma resposta que se procura avidamente no meio da confusão, da loucura de nos misturarmos com todos, de nos unirmos a todos os que partilham desta vertigem de comunicar.
Procuram-se sinais, códigos, que nos indiquem o caminho para a alma gémea que por acaso e por destino se encontra no mesmo local virtual que nós. E todos os dias as almas gémeas se encontram. Por breves momentos. Apenas efemeramente no momento em que somos plenamente completos pelo diálogo que construímos com o outro, que até pode ser a “ponte do tédio” do Sá Carneiro.
Encontra-se o código. Encontra-se o anjo perdido da nossa infância. Encontra-se o riso, a alegria, a tristeza, o tédio, a emoção de partilhar apenas palavras, que são tudo o que temos.
A escrita é mágica, é delirante, pode não parar nunca, há sempre palavras a reinventar, há sempre novos sentidos para a palavra amor, para a palavra árvore, para a palavra oásis, para a palavra alma.
As sensações ficarão aqui sempre suspensas, presas pelo desejo do real, que se impõe ao virtual. A vontade de sair daqui será sempre prisioneira de nós próprios.
Os sentimentos aqui serão sempre intensos e efémeros. Loucos de desejo, mas presos pelo dedilhar de teclas que nos apaixonam, que deixamos por aí. Com estes sinais a preto que tocam ao de leve a alma e o corpo.

terça-feira, outubro 19, 2004

A sedução das palavras

“Todas as cartas de amor são ridículas”... Escreveu o Poeta.
Não escreverei aqui esse poema, repetido até à exaustão pelos amantes e poetas.
Este poema é belo no edifício das palavras e na ironia que transforma subtis paixões, em frases de delírio de sentidos.
A sedução das palavras… Como nos apaixonamos por sinais gráficos alinhados em linhas paralelas a que chamamos linhas, agrupados em códigos que chamamos parágrafos, juntas em folhas de papel a que chamamos livro.
Escrevamos juntos um livro interminável, sem princípio e sem fim, com páginas que não podemos rasgar, pois de papel não são feitas, mas de brilho luminoso de um écran, e esperaremos que haja luar esta noite… Temos sede de ler… E fome de sermos autores deste livro interminável, fugaz e efémero.

Abertura por pedido

Abre-te vá!
Separa essas coxas
Mostra-te sem medo
Deixa-me olhar lá dentro
Sentir-te húmida
Provar-te quente
Tomar-te de uma só vez
Explorar todos os teus cantinhos
Inspira, suspira, respira
Para cima e para baixo
Será que entro?
Será que encaixo?

segunda-feira, outubro 18, 2004

A propósito de guardiães…

Sempre gostei de guardar coisas. Em criança tinha sempre uma caixa que enfeitava com recortes e desenhos que variavam conforme os gostos das modas a que pomposamente dava o nome de Caixa de Recordações. Era uma caixa mágica cheia de tesouros. Cartas, bilhetes de cinema e de autocarro, pedras e conchas, ganchos de cabelo, sapatinhos de bonecas e outras maravilhas que tais. Todas essas “coisas”, percebi mais tarde, eram apenas metáforas dos afectos que fui guardando ao longo da vida. E por falta de espaço, e porque as caixas se iam amontoando, fui começando a deitar fora as coisas e a guardar apenas os afectos. Guardo também palavras e frases. Assim me fui tornando uma guardiã de memórias.
E guardo com ternura a pessoa que me disse um dia que somos os guardiães das memórias dos nossos filhos. E tenho pena e orgulho que o meu pai tenha levado com ele momentos da minha infância. E lembrei-me de novo de como as palavras são importantes quando as saboreamos como um doce.
Tenho uma assistente que me visita regularmente em casa para me vender livros. Não gosto de comprar livros por catálogo. Gosto do aroma doce das livrarias e de abrir os livros devagarinho, saboreá-los e escolher um que me encante o dia. Mas tenho uma assistente que me visita regularmente. Apanha-me sempre a horas de jantar, hora de novidades e notícias do dia, hora de gente, hora de tudo menos de livros. Mas traz com ela uns olhos cansados e uma criança pela mão. Suponho que este seja o seu segundo emprego, “para as faltas” e suponho que a não tenha com quem deixar a criança. Nunca sei o que lhe comprar. Peço-lhe uma sugestão, peco-lhe baixinho que se despache e que vá para casa. Mas sei que preciso de lhe comprar um livro. Um qualquer, tanto faz. Só gostava de ter tempo para falar com ela. Mas compro-lhe um livro. Regularmente. O Último que me vendeu é de uma escritora da moda. Portuguesa. Jornalista. Publica muito. Vou ler. Leio. O livrinho fininho tem uma dedicatória. “Aos meus queridos I e BA, guardiões dos grandes valores intemporais”
Nem de propósito. Afinal eu tinha razão. Era mesmo guardiões! Mas sou uma guardiã. E já tinha vários amigos que delicadamente ou menos delicadamente me tinham chamado a atenção para o erro. Abro outro livro. Este, leio-o sempre que preciso de outros guardiães de palavras.
*página 182, 2ª Edição, Edições Sá da Costa, CUNHA Celso e CINTRA Lindley, Nova Gramática do Português Contemporâneo.
Singular – guardião; Plural – guardiães.


Vou continuar a comprar livros por catálogo à minha assistente. Um dia destes vou ter tempo para falar com ela. Quem sabe se consigo pintar um brilho nos seus olhos cansados.


quinta-feira, outubro 14, 2004

Eternidade. Hoje.

Presos por cordas antigas
amarrados em palavras sufocadas
tristes em tempos que não eram de esperança
cativos de dias tão iguais em que a alma doía...

Eterno é agora o sorriso
fugaz e tão efémero
dos dias que se fazem de sol, ao som da chuva de um saxofone
quentes e doces...

Não há cedo nem tarde...
há o dia em que somos apenas
as nossas memórias
há a eternidade de sermos
os guardiões das memórias dos outros...
até que possamos passar o testemunho...

E os outros serão a nossa eternidade.

quarta-feira, outubro 13, 2004

Vida e Sonho

moulin-rouge.jpg

Lembrei-me de todas as vezes que amei alguém.
suspirei e recordei o quanto me imaginei amada
Lembrei-me de todas as vezes em que exultei de paixão
E fui linda nos teus olhos de sorrisos
Assumi de vez que ser normal não é normal
Ser normal é usar as cores da moda, apenas as que nos mandam
A verdade é que acredito mesmo no amor.
Mesmo que doa, acredito no amor, até sangrar.

terça-feira, outubro 12, 2004

Amor Banal ?

Olhei estupefacto para o fundo da rua.
Tudo estava estranhamente silencioso.
No entanto sentia-me perfeitamente inquieto, como se algo me faltasse.
Procurei nas minhas memórias recentes, algo que me ajudasse a explicar o que sentia, mas estupidamente nada encontrei.
Lembrei-me de todas as vezes que amei alguém.
Depois lembrei-me de todas as vezes que alguém me amou.
Quando tal dei por mim a divagar sobre o que preferia.
A incondicional condição de quem ama e não é amado, ou a escolha intuitiva de quem é amado sem amar.
Descobri que o amor é egocêntrico e individualista.
Surge quase por magia, não pergunta opiniões e por vezes larga a bomba e passa a batata quente para nós.
O problema nem seria grande se não tivesse a ajuda da amiga paixão.
Essa é mais sorrateira. Aparece a qualquer hora sem escolher ou marcar lugar.
Assume formas pouco claras e deturpa-nos as ideias de tal forma que por vezes chegámos a confundi-la com o amor.
Também tem o seu quinhão de egocentrismo.
No meio de tanta teoria achei melhor ignorar algumas ideias e seguir em frente com o raciocínio.
Para me abstrair um pouco das dores do passado lembrei-me do futuro.
Lembrei-me que existe aí um sentimento que ultrapassa todos os demais e que se chama felicidade.
Esse já não é nada egocêntrico e quando surge tende a criar efeitos em cadeia.
Quem não se sente feliz quando está perto de alguém feliz?
Assumi de vez que ser normal não é normal.
Apenas serve para camuflarmos a nossa identidade e arranjarmos desculpas para os nossos segredos mais anormais.
A verdade é que acredito mesmo no amor.
Sinto-o todos os dias.
Acho é que o significado do sentimento perdeu a validade.
Está adulterado, digo eu!
Banalizamos o amor!
Ou melhor a palavra.
O sentimento? Esse...esse é simplesmente e felizmente inalterável.
Por sorte o amor não se explica.
Mas...será que o sentimos da mesma forma?

segunda-feira, outubro 11, 2004

Mudanças

Haloscan commenting and trackback have been added to this blog.

Mudei o sistema de comentários do blogue para o Haloscan, por ser mais acessível e não ser preciso fazer um registo. Infelizmente, não consigo repor os vossos comentários. Mas.. lembro-me de todos. :-)

sábado, outubro 09, 2004

Fala comigo

Há mulheres que choram juntas nas noites de silêncio. Há mulheres que conversam baixinho os seus sonhos, as suas crianças, as suas mágoas, os seus amores e desamores.
Há conversas que não se esquecem… Há ternuras encontradas em lágrimas e risos.


falamos de amor
amor, paixão, desejo,
sei lá mais o quê
conversa de mulheres
sentimentos que não se nomeiam
que se partilham.

Ela conta-me de si, e mostra-me a sua alma...
entro na sua fortaleza construída.

uma mulher chora
baixinho e em vergonha
porque não pode dizer
que há um homem que não sabe chorar
porque esse homem não aprendeu a amar
porque só sabe ser o que lhe ensinaram,
nada mais
porque esse homem sabe bater
sabe usar a sua força
sabe usar as mãos
como quem cospe a raiva de existir.

Há outra mulher que chora
porque não pode dizer
porque não pode gritar
a amizade
porque não sabe gritar
a revolta de saber a mágoa que sente como se fosse sua.

Há duas mulheres que choram.
Não se vêem, pressentem-se, no oceano de lágrimas e
força de que são feitas.

há uma mulher que chora baixinho
sussurra apenas as lágrimas...
(Não vão acordar os vizinhos)

Oiço-te na tua dor. Choro as tuas lágrimas.
Cobardemente, não chamei a polícia.
Cobardemente, escrevo.




El niño e su perrito

Havia um menino que era muito triste. Ele era triste porque não tinha com quem brincar.
Vivia com os pais numa casa pequenina. Verde por fora, amarela por dentro.
Como não tinha com quem brincar, o menino passava o dia de barriga para o ar, brincando em sonhos com milhares de amiguinhos que ele criava e expulsava,
conforme o seu estado de humor.
Havia meninos e meninas de todos os tamanhos.
Haviam meninos e meninas bons.
Haviam meninos e meninas menos bons.
Mas todos brincavam alegremente.
Nesses sonhos o menino, não era um menino...era um cão pequenino, que saltava e latia animadamente á volta do resto da criançada.
Era um cão exemplar.
Tomava conta dos amigos, brincava com eles, lambia os seus joelhos esfolados sempre que algum deles caía e fazia feridas, enfim...era o chefe deles todos,
e estava sempre disposto a participar nas mais loucas diabruras.
Sempre que acordava, o menino chorava porque continuava sózinho.

Um dia, quando comia uma maçã debaixo de uma árvore, ouviu um ruído estranho nuns arbustos próximos.
Dirigiu-se corajosamente ao sítio preciso de onde vinha o barulho e espreitou...
Descobriu um cachorrito semelhante ao que ele era nos seus sonhos.
Estava amarrado a uma pedra, muito sujo e magro.
-Quem terá feito isto?- Pensou revoltado o menino.
Pegou no bichinho e levou-o para casa.
-Vou-te dar de comer e beber e depois tomamos um banho está bem? - Perguntou ele ao cachorrito.

E assim foi.
Desde esse dia o menino nunca mais esteve triste. Ele era alegre porque tinha com quem brincar.
Vivia na mesma numa casa pequenina. Verde por fora, amarela por dentro.

Aos poucos foi-se sabendo na região, que o menino tinha encontrado um cachorro lindo, e todas as crianças foram ter com ele.
Agora já não brincavam em sonhos. Brincavam a sério.As crianças e um cão pequenino, que saltava e latia animadamente á volta do resto da criançada.
Era um cão exemplar.
Tomava conta dos amigos, brincava com eles, lambia os seus joelhos esfolados sempre que algum deles caía e fazia feridas, enfim...era o chefe deles todos,
e estava sempre disposto a participar nas mais loucas diabruras.

Ainda hoje estão juntos. O menino já não é mais um menino. O cachorro já não é mais um cachorro.
Mas se querem vê-los felizes é facil. É só procurarem uma árvore, colher uma maçã e sonhar.
Depois pensem na alegria e no amor incondicional que só os animais sabem nos dar...
Nessa altura, estaremos lá todos...o menino, o cachorro e todos nós que gostamos deles.

sexta-feira, outubro 08, 2004

Estrela do Mar

Numa noite em que o céu tinha um brilho mais forte
e em que o sono parecia disposto a não vir
fui estender-me na praia sozinho ao relento
e ali longe do tempo acabei por dormir

Acordei com o toque suave de um beijo
e uma cara sardenta encheu-me o olhar
ainda meio a sonhar perguntei-lhe quem era
ela riu-se e disse baixinho: estrela do mar

Sou a estrela do mar
só a ele obedeço, só ele me conhece
só ele sabe quem sou no princípio e no fim
só a ele sou fiel e é ele quem me protege
quando alguém quer à força
ser dono de mim

Não sei se era maior o desejo ou o espanto
mas sei que por instantes deixei de pensar
uma chama invisível incendiou-me o peito
qualquer coisa impossível fez-me acreditar

Em silêncio trocámos segredos e abraços
inscrevemos no espeço um novo alfabeto
já passaram mil anos sobre o nosso encontro
mas mil anos são pouco ou nada para a estrela do mar

Jorge Palma

quarta-feira, outubro 06, 2004

Conchita Morales

Abertura. Aqui se falará das vidas das Conchitas, das Marias, dos Pacos e dos Manéis.


Terra do fogo
No sul da Argentina
Oito da matina e um frio de rachar
Sai a patrulha para militar

Estendendo a roupa toda remendada
Usada pelos seus irmãos
Sonha com um tango
Dançado com as mãos

Conchita Morales
Viu los federales
E logo ali temeu
Pelas lindas formas que sua mãe lhe deu

Anda Conchita
Carita bonita
Vais ter de agradar
Ao senhor militar

Ela não sabia
Se era noite ou dia
Se ainda chovia
Quando acordou
No chão da caserna onde ele a deixou

Ela andou cansada
Rota e usada
Pela tropa que lhe traçou
Negro destino que ela abraçou

Anda Conchita
Carita bonita
A vida não espera
Tu foge daí

Em Buenos Aires
são seis de la tarde
Conchita anda a trabalhar
Tem outras bocas para sustentar

Conchita Morales
Viu los federales
Garbosos e não resistiu
Mandou todos à puta que os pariu

Anda Conchita
Carita bonita
Dá-me a tua mão
Viva a revolução

Xutos e Pontapés